As cutias podem não ser dos animais mais carismáticos de uma floresta, mas são um dos mais importantes. Se as árvores falassem, certamente agradeceriam a elas. Cutias (gênero Dasyprocta, umas onze espécies) são roedores caviomorfos - ou, menos tecnicamente, bichos aparentados às capivaras, pacas, porquinhos-da-índia e similares.
Regiões
Este grupo de roedores é um dos componentes mais característicos da fauna das Américas do Sul e Central, e também dos mais antigos, pois seus ancestrais chegaram aqui há uns 30 milhões de anos atrás, vindos da África. Se você mora no Rio de Janeiro, certamente já viu cutias: há muitas delas no Campo de Santana, em frente à Avenida Presidente Vargas, em pleno centro do Rio.
Hábitos das cutias
Na natureza, as cutias geralmente são diurnas, embora às vezes sejam noturnas. São animais herbívoros, que se alimentam principalmente de frutos, sementes, raízes e algumas folhas. Porém, na Floresta da Tijuca pesquisadores do projeto Refauna já viram uma cutia comendo um coelho nativo, ou tapiti (Sylvilagus brasiliensis). Não é possível saber se ela predou o tapiti, ou apenas se utilizava da carcaça. De qualquer forma, ou ela nunca tinha lido que era uma herbívora e devia se comportar como tal, ou bichos selvagens são mais versáteis e oportunistas do que costumamos acreditar.
Reprodução
Sempre pensamos em roedores como bichos que reproduzem muito, mas os caviomorfos, incluindo a cutia, fogem a esta regra. Elas têm geralmente apenas um ou dois filhotes por ninhada, com até duas ninhadas por ano. Este baixo potencial reprodutivo não as ajuda muito a lidar com as pressões que têm sofrido no mundo atual – das quais a presença de cachorros domésticos soltos em Unidades de Conservação parece ser uma das piores.
As "jardineiras da floresta"
As cutias não são animais muito grandes (uns 3 a 4 Kg), mas sua importância para os ecossistemas de florestas tropicais é imensa, desproporcional ao seu modesto tamanho. Não é nenhum exagero dizer que as cutias são as melhores dispersoras de sementes das nossas matas, às vezes chamadas de “jardineiras da floresta”.
Elas comem frutos muito grandes para um bicho do seu tamanho. Esses frutos tem sementes grandes, de árvores grandes como a cutieira Johannesia princeps e (na Amazônia) a castanheira Bertholletia excelsa, e essas árvores são geralmente as árvores maiores, que caracterizam florestas maduras. As cutias têm o
hábito de comer a polpa dos frutos e, se os recursos são abundantes, enterrar as sementes para consumo posterior – um hábito conhecido como “scatter hoarding”, ou estocagem.
Outras cutias, porém, procuram ativamente pelas sementes enterradas, as desenterram, e enterram em outro lugar! Deste modo cria-se um balé complexo das sementes sendo movidas de um lugar a outro; uma mesma semente pode ser movida dezenas de vezes! Muitas dessas sementes, claro, acabam perdidas, ou esquecidas, e germinam. Então, cutias são as dispersoras ideais: as sementes são enterradas no chão, em ótimas condições para germinar; são escondidas de predadores; e
são trocadas de lugar favorecendo o fluxo gênico nas populações de plantas. Com tudo isso, são fundamentais para a reprodução das árvores de grande porte, permitindo às florestas manter sua integridade e seu funcionamento. Esses roedores merecem ou não nosso respeito e admiração?
É interessante perguntar porque as cutias dispersam sementes tão grandes para o seu tamanho. Ora, no passado muitas dessas sementes eram dispersadas pela chamada megafauna, ou seja, os grandes animais que havia por aqui até alguns milhares de anos atrás, como preguiças gigantes, toxodontes, mastodontes e cavalos nativos. Todos estes animais foram extintos à medida que a expansão dos humanos modernos pelo planeta foi alcançando toda a América do Sul, entre uns 15 mil e uns 8 mil anos atrás. Os grandes
frutos caídos no chão se tornaram então um recurso subutilizado, e uma ótima oportunidade evolutiva para quem conseguisse alimentar-se deles. As cutias, com seus dentes incisivos muito poderosos e seu hábito de estocar excesso de alimento para consumo posterior, eram bem pré-adaptadas para isso, e assumiram o papel ecológico de dispersoras de muitas sementes que antes teriam sido dispersadas pela megafauna. É por isso que eu as chamo de “megafauna de bolso”.
Quando o projeto Refauna se propôs a restaurar até onde possível a fauna perdida do Parque Nacional da Tijuca, em 2010, a cutia vermelha, Dasyprocta leporina, foi escolhida para ser a primeira espécie a ser reintroduzida. Bom, agora você já sabe por quê.
Texto: Fernando Fernandez (Diretor Presidente do Refauna e Professor da UFRJ)
cutia roendo casca do fruto da pindoba (Attalea sp)
cutia coletando frutos da pindoba (Attalea sp)e carregando para outro local
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